Quando discutimos o choque séptico, precisamos ter em mente que não estamos falando apenas de uma queda de pressão arterial. O problema é mais profundo. Trata-se de um choque distributivo, no qual o defeito central está na queda da resistência vascular sistêmica. Essa falha altera a lógica do transporte de oxigênio: a oferta (DO₂) despenca, a relação entre oferta e consumo (DO₂/VO₂) se desequilibra e, no fim das contas, o tecido não consegue extrair oxigênio de forma eficiente. O resultado é hipóxia celular, que empurra a célula para o metabolismo anaeróbio, gera acidose, lesão celular, disfunção orgânica progressiva e, se nada é feito, culmina em falência múltipla de órgãos.
Essa é a base fisiopatológica que nos ajuda a compreender quando a vasopressina deve ser indicada no choque séptico. Mas antes de mergulhar nela, vamos revisitar a sequência lógica do tratamento inicial.

VEJA MAIS:
• Ventilação Não Invasiva (VNI): quando funciona, quando falha e quando está contraindicada
• Metas de oxigenação em pacientes críticos: por que “quanto mais, melhor” é um mito
• Torsades de Pointes: causas, diagnóstico e tratamento da arritmia do QT longo
• Intubação orotraqueal passo a passo: como fazer na prática real da emergência
• Glasgow ≤ 8 é igual a Intubação? Nem Sempre.
Primeiros passos no choque séptico: antes de falar em vasopressina
A conduta inicial no choque séptico passa, obrigatoriamente, por três pilares: ressuscitação volêmica, antibiótico precoce e vasopressor em caso de instabilidade persistente.
A ressuscitação deve ser feita com cristaloides isotônicos, sempre de forma individualizada. O lactato arterial precisa ser dosado já na primeira hora e reavaliado em série, porque serve como marcador da efetividade da reposição volêmica. Simultaneamente, coletamos duas hemoculturas e administramos antibiótico empírico de amplo espectro, adequado ao provável foco da infecção.
Se, mesmo após volume adequado, o paciente apresenta PAM < 65 mmHg ou lactato > 2 mmol/L, entra em cena o vasopressor de primeira linha: a norepinefrina.
O papel da norepinefrina e suas limitações
A norepinefrina é a droga de escolha inicial porque atua predominantemente em receptores alfa-1, causando vasoconstrição periférica e aumento da resistência vascular sistêmica, sem grande impacto sobre frequência ou contratilidade cardíaca, mas com importante aumento da pós carga.
Na prática, titulamos a norepinefrina de acordo com a resposta, variando de 0,1 até 2 µg/kg/min em alguns casos. Mas nem sempre esse aumento progressivo é inocente. Muitos pacientes passam a depender de doses altas de norepinefrina, o que pode trazer complicações: vasoconstrição periférica excessiva, comprometimento da perfusão tecidual e risco de isquemia em extremidades.

É nesse cenário que surge a pergunta: vale a pena continuar apenas aumentando a norepinefrina indefinidamente? Ou podemos recorrer a uma estratégia multimodal, atuando em receptores diferentes para alcançar a estabilidade com menos efeitos colaterais?
Terapia vasopressora multimodal: por que pensar em vasopressina?
A ideia da terapia vasopressora multimodal é simples e poderosa: em vez de insistir só nas catecolaminas, que atuam em receptores adrenérgicos, utilizamos drogas que ativam mecanismos distintos de vasoconstrição. Isso não apenas poupa catecolamina, como também pode trazer efeitos adicionais benéficos.

Foi nesse contexto que várias drogas foram estudadas: angiotensina II, azul de metileno e, principalmente, a vasopressina. Esta última ganhou relevância porque sabemos que pacientes sépticos frequentemente apresentam uma deficiência relativa de vasopressina endógena. Logo, a administração exógena faz sentido fisiopatológico.
Indicações de vasopressina no choque séptico: quando associar?
A grande questão é: quando começar vasopressina no choque séptico?
Segundo a Surviving Sepsis Campaign 2021, a recomendação é associar vasopressina quando a dose de norepinefrina atingir entre 0,25 e 0,5 µg/kg/min. Isso representa uma mudança prática importante, pois no passado se deixava a vasopressina apenas para os casos refratários, em doses altíssimas de norepinefrina. Hoje, busca-se um início mais precoce, poupando catecolaminas.
É preciso reconhecer que essa recomendação tem força fraca e baseia-se em evidência de qualidade moderada. Mas, na beira do leito, faz diferença: não esperar o paciente colapsar para só então pensar na vasopressina pode reduzir complicações e tornar o choque mais manejável.
Como usar a vasopressina na prática
Aqui está a parte que realmente interessa no dia a dia da emergência: como prescrever a vasopressina de forma correta e segura.

A droga é fornecida em ampolas de 20 unidades em 1 mL. O preparo usual é diluir em 100 mL de solução fisiológica, obtendo-se uma solução de 0,2 U/mL.
As doses são fixas e independentes do peso corporal: utilizamos entre 0,01 e 0,04 U/min. Convertendo para a bomba de infusão, isso equivale a um fluxo entre 3 e 12 mL/h.
É fundamental respeitar o teto de 0,04 U/min, porque acima disso o risco de isquemia mesentérica, necrose de extremidades e hipoperfusão crítica aumenta de forma significativa. Além disso, devemos considerar seus possíveis efeitos na redução da perfusão coronariana ou aumento importante da pós carga com queda do débito cardíaco.
Outro detalhe prático: a meia-vida da vasopressina é de 10 a 15 minutos. Isso significa que, ao ajustar a dose, devemos aguardar pelo menos 15 minutos para avaliar o efeito sobre a PAM. É diferente da norepinefrina, cujo efeito aparece em 1 a 2 minutos. Essa paciência é especialmente importante no desmame da droga, em que reduzimos progressivamente de 0,01 em 0,01 U/min, sempre esperando 15 a 20 minutos antes de decidir o próximo passo.
Benefícios potenciais e riscos da vasopressina
O principal benefício da vasopressina é o efeito poupador de catecolaminas. Ela permite reduzir a dose de norepinefrina necessária para manter a pressão arterial alvo, o que por si só já é valioso.
Outro ponto é que, em acidose metabólica grave, a norepinefrina e a adrenalina perdem parte do efeito vasoconstritor, porque os receptores alfa-1 ficam menos responsivos. Nesse cenário, a vasopressina mantém sua eficácia, tornando-se uma alternativa interessante.
Em relação ao rim, há indícios de que a droga pode aumentar a taxa de filtração glomerular, já que promove vasoconstrição preferencial nas arteríolas eferentes. Alguns estudos sugerem até um papel na redução da lesão renal aguda e da necessidade de diálise, embora isso ainda seja controverso.
Por outro lado, não podemos esquecer dos riscos. A vasopressina pode reduzir débito cardíaco em pacientes com disfunção sistólica, pelo aumento da pós-carga. Além disso, há o risco de isquemia coronariana e de extremidades, especialmente em doses mais altas.

Evidências científicas: o que mostram os estudos
O estudo mais famoso é o VASST (Vasopressin And Septic Shock Trial). Ele comparou doses baixas de vasopressina (0,01 a 0,03 U/min) com norepinefrina e não encontrou diferença em mortalidade global em 28 dias. No entanto, em uma análise de subgrupos, observou-se que pacientes com choque menos grave tiveram menor mortalidade com vasopressina, sugerindo um possível benefício no uso precoce.
Outra análise interessante foi a interação com corticoides: pacientes que receberam vasopressina + corticoide apresentaram menor mortalidade do que os tratados apenas com norepinefrina. Já aqueles que não receberam corticoide tiveram resultados piores. Isso levantou a hipótese de um efeito sinérgico entre vasopressina e hidrocortisona, embora não seja consenso.

O VANISH trial também avaliou essa combinação, mas não conseguiu demonstrar redução significativa de mortalidade. Mostrou, no entanto, que a vasopressina foi capaz de reduzir a necessidade de norepinefrina e de terapia de substituição renal em alguns pacientes.
Conclusão prática: como pensar na vasopressina beira-leito
Quando você estiver de frente para um paciente com choque séptico, pense na seguinte lógica:
- Primeiro, volume, lactato, antibiótico, hemoculturas.
- Se precisar de vasopressor, comece com norepinefrina.
- Se a dose da norepinefrina começar a subir e chegar em torno de 0,25 a 0,5 µg/kg/min, considere a associação de vasopressina e hidrocortisona (50 mg EV 6/6h).
- Lembre-se: doses fixas, entre 0,01 e 0,04 U/min, respeitando o teto de segurança.
- Use em pacientes com função sistólica preservada. Nos que têm disfunção importante, prefira dobutamina como segunda droga.
- Tenha paciência na titulação e no desmame: ajuste em passos pequenos e espere o tempo de meia-vida.
O benefício principal é poupar catecolaminas, mas em alguns subgrupos pode haver vantagem em mortalidade ou função renal. E mesmo que o impacto final ainda seja debatido, já sabemos que a droga é segura quando usada corretamente e pode fazer diferença na condução de casos complexos.
👉 Se você quer aprofundar ainda mais sua prática em terapia intensiva e emergências, explore os conteúdos exclusivos da área Tera Emergência no app TeraQuiz, com discussões práticas, quizzes clínicos, curso extensivo, e muito mais para o seu raciocínio crítico.
E se você quiser aprofundar ainda mais esse raciocínio clínico e ter acesso a uma formação completa, acesse o nosso curso extensivo Tera Emergência dentro do app TeraQuiz. Lá você encontrará milhares de questões originais com comentários e revisões em emergência, flashcards para revisão ativa, discussões semanais no Café com Emergência, nosso clube de casos clínicos, além de uma área exclusiva com calculadoras, diretrizes e artigos. Um espaço fantástico e completo, esperando por você.


