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Coma hipoglicêmico e hiperglicêmico: por que medir a HGT é o primeiro passo diante do paciente em coma

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Dr. Josué Vieira

Médico Nefrologista, com 10 anos de atuação em emergência e UTI

CRM-MS: 14123
RQE: 8359 (Clínica Médica)
RQE: 8519 (Nefrologia)

RESUMO

No paciente em coma ou com déficit neurológico focal, medir a glicemia capilar é uma das primeiras medidas diagnósticas e pode salvar vidas. Entenda o raciocínio clínico do MOVED, as diferenças entre coma hipoglicêmico e hiperglicêmico e o impacto dessa conduta simples na emergência.

O primeiro pensamento diante do paciente em coma: medir a HGT salva vidas

O paciente chega comatoso. Pupilas lentas, olhar fixo, resposta mínima. A equipe entra em modo automático: “prepara a intubação”. Mas antes de pensar em tubo, drogas e laringoscópio, é preciso pensar como clínico. E a pergunta que deve vir à mente é simples, mas decisiva: qual é a glicemia desse paciente?

Essa pergunta define o rumo da conduta. Medir a glicemia capilar (HGT) é uma das primeiras medidas diagnósticas diante de qualquer paciente com rebaixamento do nível de consciência ou déficit neurológico focal. É rápida, barata, disponível em qualquer sala de emergência e, mais importante, capaz de revelar causas de coma que são totalmente reversíveis se tratadas a tempo.

No Brasil, temos entre 12 e 15 milhões de diabéticos. Isso significa que uma parcela expressiva dos pacientes atendidos na emergência pode apresentar distúrbios glicêmicos como causa ou agravante de um coma. E, por incrível que pareça, muitas vezes o diagnóstico se perde porque alguém esqueceu de fazer o básico: colher uma HGT à beira do leito, ainda durante a avaliação inicial feita pelo enfermeiro.

Da irritabilidade sutil ao silêncio profundo do coma: a hipoglicemia é uma camaleoa clínica. Ela começa mexendo no humor, aciona o sistema autonômico, e, se não a respeitarmos, sequestra o cérebro em plena luz do dia. Reconhecer cedo é tradição na boa medicina; ignorar seus primeiros sussurros é convite à convulsão e dano neurológico definitivo.

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O raciocínio clínico do MOVED: agir com lógica, não só com pressa

Antes de qualquer intervenção heróica, o raciocínio precisa seguir uma sequência que organiza o caos da emergência. É aqui que entra o MOVED, um mnemônico simples, mas de enorme poder prático:

M – Monitorização: conecte o paciente ao monitor multiparamétrico. Frequência cardíaca, pressão arterial, saturação, ritmo cardíaco.
O – Oxigênio: se a saturação for menor que 92%, administre O₂ imediatamente.
V – Veia: obtenha dois acessos venosos calibrosos. Nada é mais frustrante do que identificar a causa e não poder tratar.
E – Eletrocardiograma: sempre que possível, registre um ECG rápido. Distúrbios metabólicos graves, como hipocalemia, acidose, hiperosmolaridade, intoxicações, já podem estar estampados no traçado ou até convertidos em graves bradi e taquiarritmias.
D – Dextrose: e aqui está o ponto de virada. O “D” lembra que é hora de avaliar e corrigir a glicemia.

Perceba que o MOVED não é um checklist mecânico, mas um raciocínio progressivo que protege o cérebro enquanto se busca a causa do coma. E, entre todos os passos, a glicemia capilar se destaca por uma razão: é o dado que pode mudar tudo em minutos.

Hipoglicemia: a causa silenciosa e reversível de coma

Diante de uma HGT com valor baixo ou mostrando “LO” (low), não há tempo para hesitação.

Convencionamos chamar de hipoglicemia tudo abaixo de 70 mg/dL, mas o organismo não lê protocolos. Quem despenca de 500 pode sentir o peso da queda mesmo “acima” do corte, enquanto outros caminham serenamente com 60 mg/dL sem sequer corar. Na beira-leito, números iluminam; consciência clínica decide.


Esse “LO” significa que a glicemia está abaixo do limite de detecção do aparelho, geralmente menor que 20 mg/dL, dependendo da marca. Nesse cenário, a conduta precisa ser imediata: glicose hipertônica a 50%, 50 mL IV em bolus lento, podendo repetir se necessário.

Se o paciente for etilista crônico ou desnutrido, associe tiamina 300 mg IV antes ou junto da glicose, para prevenir a síndrome de Wernicke-Korsakoff.

Agora, mais importante do que decorar a dose, é entender o que está acontecendo dentro do cérebro. A glicose é o único combustível metabólico do neurônio. Sem glicose, a bomba de sódio e potássio entra em falência, há edema citotóxico, acúmulo de cálcio intracelular e liberação de glutamato, que em excesso gera excitotoxicidade neuronal. É literalmente o neurônio “queimando” de dentro para fora.

E por que isso importa clinicamente? Porque essa cascata pode produzir déficits neurológicos focais, simulando um AVC. O paciente pode apresentar hemiparesia, afasia ou desvio de rima, e o reflexo imediato é pensar em trombólise. Mas se a glicemia estiver em 25 mg/dL, a trombólise será um erro, e a glicose, o verdadeiro antídoto.

Estudos de neuroimagem já demonstraram que a hipoglicemia grave pode causar lesões irreversíveis em regiões sensíveis como córtex occipital, tálamo e hipocampo, justamente as áreas de maior consumo energético. Em outras palavras: quanto mais tempo o cérebro ficar sem glicose, maior a chance de sequelas permanentes.

Hiperglicemia extrema: quando o sangue vira açúcar puro

Na outra ponta do espectro, aparece o “HI” no glicosímetro.

No glicosímetro, “LO” e “HI” não são efeitos especiais: são alarmes limítrofes da fisiologia. “LO” indica glicemia tão baixa que escapa ao alcance do aparelho, tipicamente abaixo de ~20 mg/dL. “HI” revela o oposto: valores tão altos, acima de 500–600 mg/dL, que transbordam o limite de leitura. Quando a máquina desiste de medir, é sinal de que o seu raciocínio precisa assumir o comando imediatamente.

FONTE: Tera Emergência


Esse “HI” significa “high”, glicose acima do limite superior de detecção, geralmente >500–600 mg/dL. Aqui, o raciocínio deve se dividir em duas possibilidades: cetoacidose diabética (CAD) e estado hiperosmolar hiperglicêmico (EHH).

Na CAD, o problema é a falta absoluta de insulina, que leva o corpo a queimar gordura e produzir corpos cetônicos. O paciente apresenta acidose metabólica com ânion gap aumentado, pH <7.3, e cetonemia ou cetonúria positiva. O quadro pode cursar com confusão, sonolência e, em casos graves (pH <7), coma.

Já no EHH, a insulina está presente, mas insuficiente para impedir a hiperglicemia extrema. As glicemias ultrapassam 600 mg/dL, a osmolaridade plasmática fica acima de 320 mOsm/L, e o pH permanece >7.3, não há acidose significativa. O resultado é uma desidratação hipertônica intensa, com sódio frequentemente acima de 150 mEq/L, que causa desidratação neuronal e coma hiperosmolar.

Esses pacientes costumam perder de 6 a 9 litros de água antes da chegada ao hospital. Não é à toa que o coma hiperglicêmico é tão frequente entre idosos e diabéticos descompensados.

Coma misto: quando a cetoacidose se soma à hiperosmolaridade

Nem sempre o quadro é “ou um ou outro”.
Existe a CAD hiperosmolar, uma sobreposição em que o paciente apresenta acidose metabólica com ânion gap aumentado e osmolaridade plasmática elevada. É um quadro de extrema gravidade, que requer reposição volêmica vigorosa, insulina endovenosa e correção lenta da osmolaridade e dos distúrbios hidroeletrolíticos.

E mais uma vez, perceba como tudo começa na mesma pergunta simples: “qual é a glicemia desse paciente?”.

Eletrocardiograma e distúrbios metabólicos: o MOVED completo

Enquanto o raciocínio avança, o “E” do MOVED não pode ser esquecido. O eletrocardiograma é um espelho do metabolismo. Em quadros graves de hipoglicemia, é possível observar taquicardia sinusal, prolongamento do QT, e até arritmias ventriculares associadas à liberação de catecolaminas.

Nas hiperglicemias graves, a hipocalemia secundária à diurese osmótica também pode alterar o traçado. Por isso, o ECG faz parte da abordagem inicial, não apenas como exame cardiológico, mas como termômetro metabólico. Além de estar frequentemente alterado em causas tóxicas relacionadas ao coma.

Antes de intubar, pense. Antes de agir, raciocine.

O impulso de “intubar primeiro” é compreensível. Diante de um paciente comatoso, queremos garantir via aérea. Mas a verdade é que, muitas vezes, basta glicose para acordar o paciente. O herói é aquele que pensa, não o que age no automático.

O raciocínio clínico se constrói com pausas conscientes. Em emergências, as decisões que salvam são as que nascem do pensamento organizado. Por isso, antes de empunhar o tubo, o laringoscópio ou a seringa de sedação, faça o MOVED.

Conclusão prática: o MOVED como bússola do raciocínio clínico

Diante de qualquer paciente em coma, torpor ou déficit neurológico focal, o primeiro ato deve ser medir a glicemia capilar. É rápido, acessível e pode transformar um desfecho fatal em reversão completa. Pense que a HGT é o eletroencefalograma do raciocínio clínico: ela mostra se o seu pensamento está vivo ou adormecido. E lembre-se: nem toda hemiparesia é AVC, nem todo coma é encefalopatia. Às vezes, é apenas uma hipoglicemia pedindo socorro. No final das contas, o MOVED é mais do que um mnemônico, é uma forma de pensar medicina com lógica, calma e propósito.


No atendimento de urgência, quem domina o MOVED domina o tempo. E quem domina o tempo, salva o cérebro. Quer treinar esse raciocínio clínico passo a passo, com simulações reais de emergência? Acesse agora a área Tera Emergência do app TeraQuiz e continue aprimorando seu raciocínio médico em casos críticos reais.

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