Um caso real do pronto-socorro
Uma senhora idosa de 64 anos, hipertensa, diabética e obesa, chega ao pronto-socorro com febre, tosse e dispneia há cinco dias. A frequência respiratória está em 35, a cardíaca em 125, a pressão em 80/55 mmHg e a saturação em 82%.
Ela encontra-se sonolenta (Glasgow 12), oligúrica, em choque. A gasometria revela uma PaO₂/FiO₂ de 180, pH 7,20, bicarbonato 14 e PaCO₂ 46 mmHg. O raio-X de tórax demonstra uma consolidação à esquerda e um derrame pleural significativo.
É feita expansão volêmica, mas não há resposta. Inicia-se noradrenalina, que rapidamente escala para 0,4 µg/kg/min. O médico assistente opta por ventilação não invasiva (VNI). Passa-se uma hora, depois duas, depois três. A paciente segue taquipneica, mais sonolenta, saturando 90–92% apenas com FiO₂ de 60%. A noradrenalina sobe para 0,5 µg/kg/min.
O que vemos aqui? Vou responder da maneira mais sincera possível!
Um exemplo clássico de uso inadequado da VNI, que apenas retardou a intubação orotraqueal e aumentou o risco de morte dessa paciente.

Paciente em ventilação não invasiva (VNI) com máscara facial oronasal, conectada a ventilador mecânico. A interface cobre nariz e boca, permitindo aplicação de pressão positiva contínua sem necessidade de intubação orotraqueal.
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O que a literatura mostra sobre a VNI
A VNI é uma ferramenta poderosa, isso é inegável, mas funciona bem apenas em contextos específicos, onde seu benefício é bem demonstrado na literatura amparando seu uso em evidências, como:
- Edema agudo de pulmão congestivo → o uso de vasodilatadores endovenosos como a nitroglicerina e diuréticos de alça, melhora rapidamente a mecânica ventilatória, após descongestão eficaz, por negativar o balanço hídrico e reduzir a pré carga cardíaca.
- Exacerbação de DPOC com acidose respiratória aguda → reduz trabalho respiratório e hipercapnia, ao melhorar a ventilação alveolar, enquanto agentes broncodilatadores e corticóides reduz a resistência e a inflamação nas vias aéreas..
- Insuficiência respiratória hipoxêmica em imunossuprimidos → pode evitar intubação precoce, minimizando as infecções oportunistas que pioram sobremaneira o prognóstico desse grupo de pacientes.
Fora desses cenários, o benefício é muito limitado.
Contraindicações absolutas da VNI
Há situações em que a VNI não deve nem ser tentada:
- Rebaixamento grave do nível de consciência (exceto rebaixamento leve em casos de encefalopatia hipercápnica em pacientes com DPOC exacerbado).
- Instabilidade hemodinâmica ou choque séptico.
- Hipoxemia grave e refratária (PaO₂/FiO₂ < 200).
- Acidose metabólica aguda significativa.
- Incapacidade de proteger a via aérea (risco de broncoaspiração).
- Falha precoce após início da VNI.
- Vômitos incoercíveis
- Obstrução da via aérea alta
- Incapacidade de colaboração por parte do paciente
- Trauma bucomaxilofacial extenso
Na paciente do caso, havia grande parte dessas contraindicações: pneumonia comunitária grave, múltiplas disfunções orgânicas, choque séptico refratário, acidose mista e rebaixamento de sensório. O uso de VNI aqui apenas atrasou a intubação.
Como reconhecer falha da VNI: o Score HACOR
Mesmo quando indicada, não basta iniciar VNI. É preciso monitorar e calcular o risco de falha. Para isso, temos o score HACOR, simples e validado, que deve ser aplicado com uma hora de VNI:
- H: Heart rate (frequência cardíaca).
- A: Acidose (pH).
- C: Consciência (Glasgow).
- O: Oxygenation (PaO₂/FiO₂).
- R: Respiratory rate (frequência respiratória).
Se o score for ≥ 5 pontos em uma hora de VNI, a taxa de falha é altíssima. Estudos mostram que pacientes com HACOR elevado mantêm risco de falha em 12, 24 e 48 horas, e, se a intubação for retardada, a mortalidade aumenta.
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A lógica da VNI
A VNI é um suporte ventilatório não invasivo que só funciona se o paciente:
- estiver consciente e colaborativo;
- tiver uma causa potencialmente reversível em curto prazo.
É por isso que o edema agudo de pulmão e o DPOC exacerbado respondem tão bem, porque em poucas horas conseguimos tratar a causa de base.
Já em cenários de choque séptico, falência orgânica múltipla ou pneumonia grave, a VNI não é solução, é apenas um atraso perigoso. Tais disfunção podem persistir por dias a semanas até resposta clínica satisfatória.
Conclusão prática
- Indique VNI apenas nos cenários validados pela literatura.
- Avalie contraindicações sempre (mais importante do que saber indicar a VNI é saber quando contraindicar a VNI, guarde esse mantra com você).
- Monitore rigorosamente a resposta com o score HACOR (indique e monitore).
- Não insista diante de sinais de falha precoce (estime o risco de falha em 1h com o score HACOR).
Na emergência, o tempo perdido com VNI mal indicada pode custar a vida.
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