Um caso real para começar
Plantão cheio na UTI. Um idoso, entubado por uma pneumonia comunitária grave, acabou de chegar da sala de emergência. A gasometria mostra uma PaO₂ de 150 mmHg, saturação de 100%. Todos parecem tranquilos: “Está bem oxigenado”.
E esse é o problema.
Todo mundo corre quando vê hipóxia. Alguns se preocupam com hipercapnia. Mas quem corre quando há hiperóxia? Quase ninguém. Nunca vi alguém dizer “corre fisioo” ou “chama o doutor” que o paciente está saturando 100%.
Só que a hiperóxia também é deletéria. O excesso de oxigênio pode fazer tão mal quanto a falta. E é hora de começar a falar disso de maneira clara, prática e baseada em evidências.
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O mito do “quanto mais oxigênio, melhor”
Na prática, vemos oxigênio ser prescrito como se fosse inócuo: cateter nasal em paciente ansioso, máscara de reservatório para qualquer hipoxemia leve, FiO₂ de 100% deixada a noite inteira após intubação. Mas o corpo humano não foi feito para viver com excesso de oxigênio. O ar ambiente tem FiO₂ de 21%, e a homeostase do organismo se equilibra nesse patamar. A hiperóxia artificial provoca:
- Estresse oxidativo.
- Formação de radicais livres.
- Dano alveolar e endotelial.
- Maior risco de atelectasia de absorção.
E o que dizem os estudos?
O que a literatura mostra
Meta-análise IOTA – Lancet 2018
Incluiu mais de 16 mil pacientes. Mostrou que estratégias liberais de oxigênio aumentaram mortalidade intra-hospitalar e em 30 dias, sem oferecer benefício em desfechos clínicos relevantes (Lancet, 2018).
OXYGEN-ICU – 2016
Randomizou pacientes de UTI para estratégia conservadora (PaO₂ 70–100 mmHg / SpO₂ 94–98%) versus liberal (PaO₂ permissiva até 150 mmHg, SpO₂ 97–100%).
Resultado: menor mortalidade intra-hospitalar e mais horas livres de ventilação mecânica no grupo conservador.
HOT-ICU – NEJM 2021
Quase 3 mil pacientes com insuficiência respiratória aguda. Comparou PaO₂ alvo de 60 mmHg versus 90 mmHg.
Resultado: nenhuma diferença em mortalidade em 90 dias. Ou seja: não há vantagem em hiperoxigenar.
PILOT Trial – NEJM 2022
Comparou metas de saturação (90%, 94% e 98%) em pacientes ventilados.
Resultado: sem diferença em mortalidade ou dias livres de ventilação. Mas reforça: não há ganho em saturar 98% o tempo todo.
HYPER2S – choque séptico
442 pacientes com sepse grave, FiO₂ 100% por 24h versus meta SpO₂ 88–95%.
👉 Resultado: mais eventos adversos no grupo hiperóxico, com um paciente em cada 11 exposto ao excesso de O₂ sofrendo dano clínico.
O que as diretrizes orientam
- SpO₂ alvo: 92–96% para a maioria dos pacientes críticos.
- Evitar manter saturação 100% de forma prolongada.
- PaO₂ entre 70 e 100 mmHg é adequado.
- Titular a FiO₂ para o mínimo necessário. Não existe “PaO₂ ideal”: existe a PaO₂ alvo, para cada paciente, em cada situação.
Conclusão prática
Hipóxia grave mata. Mas hiperóxia também mata, só que de forma mais silenciosa.
Da próxima vez que olhar a gasometria e ver PaO₂ de 150 mmHg e saturação 100%, não se acomode: isso também exige ação.
O raciocínio é simples:
- Evite extremos.
- Titule oxigênio como medicamento.
- Persiga metas conservadoras (94–98%), não números absolutos.
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