O caso que ensina mais do que mil slides
Plantão movimentado no pronto-socorro. Um homem de 52 anos, alcoólatra crônico, já conhecido da equipe por mais de vinte internações prévias, chega debilitado, emagrecido, relatando náuseas e vômitos. Há duas semanas vinha bebendo destilados diariamente, desde a última alta hospitalar.
Na admissão, estava hipotenso, taquicárdico e confuso. Recebeu expansão volêmica, melhorou a pressão. O ECG inicial mostrava infra-ST em V2, V3 e V4, levantando a hipótese de síndrome coronariana aguda com choque cardiogênico. Mas havia algo que passou despercebido: o intervalo QT estava prolongado.
A gasometria chega com o resultado: potássio de 2,5 mEq/L. Uma hipocalemia grave, suficiente para desestabilizar qualquer coração. O paciente desperta agitado, começa a alucinar, e recebe haloperidol 10 mg intramuscular. Poucos minutos depois, o monitor exibe o traçado típico, que qualquer emergencista reconhece com um frio na espinha: Torsades de Pointes.

ECG de um Torsades de Pointes em mulher com hipocalemia (potássio: 2.4 mmol/L) e hipomagnesemia (magnésio: 1.6 mg/dL).
Esse caso resume bem como essa arritmia acontece: múltiplos fatores combinados — distúrbio eletrolítico grave, QT longo adquirido, droga pró-arrítmica, resultam na torção das pontas, uma taquicardia ventricular polimórfica que pode ser autolimitada, mas também pode ser a porta de entrada para a fibrilação ventricular e a morte súbita. Para mais casos como esse acesso o nosso Clube do Caso, na área Tera Emergência do App Teraquiz. Faça download e se cadastre gratuitamente clicando em um dos botões abaixo:
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O que é o Torsades de Pointes?
O Torsades de Pointes (TdP) é uma forma de taquicardia ventricular polimórfica. Diferente das monomórficas, em que o QRS mantém a mesma morfologia, aqui os complexos variam de forma e amplitude dentro da mesma derivação. No TdP, essa variação é tão característica que parece uma fita torcida, oscilando em torno da linha isoelétrica. Foi essa imagem que originou o nome francês “torção das pontas”.
Mais do que uma curiosidade visual, esse padrão traduz uma instabilidade elétrica grave, quase sempre associada ao prolongamento do intervalo QT.
O intervalo QT representa o tempo total da despolarização até o fim da repolarização ventricular. Quando esse tempo se alonga, cria-se um cenário em que potenciais de ação anômalos (pós-potenciais precoces) podem disparar arritmias ventriculares. É como se o coração estivesse repolarizando de forma tão lenta e irregular que fica vulnerável a disparos caóticos.

Intervalo QT medido a partir do início do QRS até o final da onda T ou U. Corrigir pela FC usando as fórmulas validadas. Valor normal inferior a 450 ms em homens e inferior a 470 ms em mulheres.
Causas de Torsades de Pointes
QT longo congênito
Mais raro, geralmente identificado em pacientes jovens. Decorre de mutações em canais de potássio ou sódio, que prolongam a repolarização. Costuma ser deflagrado por exercício físico ou estresse emocional. O caso clássico é a síncope em jovens durante a natação.
QT longo adquirido
Muito mais frequente e o que vemos quase todos os dias na emergência (não é uma arritmia tão frequente). Possíveis causas incluem as seguintes:
- Medicamentos:
Antiarrítmicos (quinidina, sotalol), antipsicóticos (haloperidol, risperidona, ziprasidona), antibióticos (macrolídeos, fluoroquinolonas), pró-cinéticos (cisaprida, domperidona), metadona, alguns antidepressivos. - Distúrbios eletrolíticos:
- Hipocalemia (a mais frequente).
- Hipomagnesemia (que piora e perpetua a hipocalemia).
- Hipocalcemia (menos comum, mas também possível).
- Hipocalemia (a mais frequente).
- Condições clínicas:
Desnutrição, alcoolismo crônico, uso abusivo de diuréticos, diarreia crônica, pós-operatório de cirurgias grandes.
👉 A tríade fatal do caso clínico resume bem: hipocalemia grave + QT longo não reconhecido + haloperidol em dose alta.
Como o Torsades de Pointes se manifesta
O paciente com QT longo pode estar totalmente assintomático, até que algum gatilho desencadeia o episódio. Quando a arritmia ocorre, os sintomas variam conforme a duração e a repercussão hemodinâmica:
- Palpitações e tontura nos episódios curtos.
- Síncope e lipotímia nos episódios mais longos.
- Baixo débito, hipotensão e choque quando o ritmo se mantém.
- Degeneração para fibrilação ventricular e parada cardíaca nos casos mais graves, ainda bem que raros.
A maioria dos episódios de TdP tendem a ser autolimitados, cessando espontaneamente, mas o risco está justamente na recidiva e na possibilidade de degeneração.
Diagnóstico de Torsades de Pointes no ECG
O diagnóstico é eminentemente eletrocardiográfico.
- No ECG de base:
- Intervalo QT prolongado (corrigido pelo intervalo RR, QTc).
- Onda U às vezes proeminente (intervalo QUc passa a vigorar).
- Intervalo QT prolongado (corrigido pelo intervalo RR, QTc).
- Durante a arritmia:
- Ritmo ventricular rápido, por definição maior que 100 bpm, mas habitualmente entre 160–250 bpm.
- Complexos QRS variando ciclicamente de amplitude e eixo, dando o aspecto de torção.
- O último batimento sinusal antes do TdP geralmente mostra QT prolongado.
- Ritmo ventricular rápido, por definição maior que 100 bpm, mas habitualmente entre 160–250 bpm.
A “torção das pontas” é tão característica que, uma vez vista, nunca mais se esquece.
Tratamento do Torsades de Pointes, o que fazer
1. Primeira avaliação: estabilidade hemodinâmica
- Instável (hipotenso grave, síncope, choque, PCR iminente):
- Desfibrilação elétrica imediata (choque não sincronizado).
- Aqui não cabe cardioversão sincronizada, porque o aparelho não consegue identificar a onda R em ritmo tão polimórfico.
- Desfibrilação elétrica imediata (choque não sincronizado).
- Estável:
- Iniciar sulfato de magnésio EV.
- Corrigir distúrbios eletrolíticos.
- Suspender medicações que prolongam QT.
- Iniciar sulfato de magnésio EV.
2. Sulfato de magnésio – o tratamento de escolha
- 2 g EV em 15 minutos.
- Pode repetir a dose até um total de 4–6 g na primeira hora, se necessário para evitar recidiva.
- Funciona mesmo com magnésio sérico normal.
- Estabiliza membranas, reduz pós-potenciais, previne recorrência.
3. Correção de distúrbios eletrolíticos
- Potássio: elevar para > 4,5 mEq/L.
- Magnésio: normalizar.
- Cálcio: corrigir se hipocalcemia.
4. Medidas adicionais em recorrências
- Isoproterenol IV: aumenta frequência sinusal, encurta QT.
- Marca-passo temporário: alternativa em refratários, mesmo com a magnesioterapia.
- Bicarbonato de sódio: útil em intoxicações por quinidina.
A lição que fica do caso
O paciente do nosso caso clínico não morreu de infarto, mas quase morreu de desatenção ao QT. O erro foi duplo: não reconhecer a hipocalemia grave como causa do infra-ST e ainda prescrever haloperidol em dose alta. O resultado foi a tempestade elétrica perfeita: Torsades de Pointes.
Esse episódio mostra que calcular o QT é tão essencial quanto avaliar o segmento ST. É nesse detalhe que se salva ou se perde uma vida.
Conclusão prática sobre Torsades de Pointes
O Torsades de Pointes não é apenas uma curiosidade eletrocardiográfica. É uma arritmia perigosa, que pode levar da síncope à morte súbita em minutos. O raciocínio clínico deve ser claro:
- Identifique o QT longo sempre.
- Lembre-se das drogas e dos eletrólitos que prolongam QT.
- Use magnésio EV como primeira linha.
- Desfibrile se instável.
Corrija causas de base e previna recidivas.


