Na emergência, uma dos conhecimentos mais repetidos, quase como um mantra, é:
“Glasgow menor ou igual a 8 é igual a intubação orotraqueal.” Mas será que isso é mesmo verdade? Será de fato que podemos reduzir uma decisão tão crítica a uma simples soma de pontos? A resposta, como você vai perceber, é mais complexa do que essa simplificação trivial.
A origem do mito
A Escala de Coma de Glasgow foi criada nos anos 1970 para avaliar pacientes com traumatismo cranioencefálico (TCE). Eram pessoas que estavam até há poucas horas normais, partindo de um Glasgow 15, iam perdendo pontos de forma aguda, em minutos, horas ou dias, devido a lesões estruturais graves no encéfalo causadas por mecanismos de trauma.
Ela avalia três domínios:
- Abertura ocular (somando de 1–4 pontos)
- Resposta verbal (somando de 1–5 pontos)
Resposta motora (somando de 1–6 pontos)

Com o tempo, a escala foi expandida para outros contextos clínicos, porque se mostrou reprodutível, prática e com alta concordância entre examinadores. E mais: surgiu a variação chamada Glasgow Pupil (ECG-P), que considera a reatividade pupilar e ajusta a pontuação de acordo com a presença de midríase arreativa. Você pode encontrar ambas as escalas para uso gratuito nas nossas calculadoras beira leito disponíveis no app teraquiz.. Baixe clicando em um dos botões abaixo:
O problema da aplicação indiscriminada
A partir da associação entre Glasgow ≤ 8 e perda de proteção de via aérea em TCE e AVEs graves, difundiu-se a regra de que esse ponto de corte deveria ser sinônimo de intubação. Mas há mais ruas entre esse ponto de corte e o significado real de perda de proteção da via aérea. Há um detalhe importante que não pode ser neglingeciado: nem sempre um Glasgow baixo significa ausência de proteção de via aérea, e nem sempre um Glasgow alto garante proteção eficaz. Vamos explorar os dois lados:
Falsos positivos
Alguns pacientes têm Glasgow baixo cronicamente, sem que isso represente perda de reflexos protetores:
- Surdos-mudos ou com afasia pós-AVE → pela própria incapacidade do uso da linguagem verbal perdem pontos verbais.
- Tetraplégicos, hemiplégicos, síndrome de fragilidade → comprometem a resposta motora por fraqueza ou incapacidade de controle muscular, mas sem relação com a manutenção da vigília.
- Miastenia gravis, botulismo, acidente crotálico → o bloqueio da placa neuromuscular pode causar fraqueza generalizada inclusive com dificuldade em abrir os olhos.
- Demência avançada → pela dificuldade de compreensão da linguagem e controle de função cerebral superiores esses pacientes apresentam perdas de pontuação em vários domínios da escala de Glasgow.
Nesses casos, a soma é baixa, mas a via aérea continua muitas vezes protegida.
Para entender mais sobre mecanismos do coma e condutas terapêuticas diante do rebaixamento do nível de consciência, não deixe de conferir nossa formação extensiva em emergência, o Tera Emergência.
Falsos negativos
Por outro lado, há situações em que o Glasgow pode ser maior que 8, mas a ameaça à via aérea é real e imediata:
- Risco de edema de glote progressivo (anafilaxia, queimadura de via aérea).
- Obstrução mecânica progressiva (trauma facial extenso, hematoma cervical e abscesso em expansão).
- Doenças neuromusculares (Guillain-Barré, miastenia gravis, síndrome de Miller-Fisher, botulismo).
- Vômitos incoercíveis ou secreção abundante sem reflexo de tosse eficaz apesar de Glasgow > 8.
- Crises convulsivas reentrantes, mesmo que o paciente recupere parcialmente a consciência entre os intervalos.
Aqui, o paciente ainda responde, mas não consegue proteger a via aérea.
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Contexto é tudo
Mais do que o número, o que deve guiar o emergencista é a história clínica e a fisiopatologia do quadro e o potencial de reversibilidade nos próximos minutos a horas. Um paciente com Glasgow 6 por hipoglicemia aguda grave pode recuperar o nível de consciência rapidamente após glicose EV. O mesmo vale para hipotensão corrigida com expansão volêmica ou intoxicação revertida com antídoto (naloxona, flumazenil).
Já um paciente com intoxicação alcoólica pode chegar sonolento, Glasgow ≤ 8, mas meia hora depois estar agitado e agressivo, exigindo contenção física. Isso é particularmente frequente em etilistas crônicos, eficientes em metabolizar rapidamente o álcool e tolerantes a doses elevadas. Se você tivesse corrido para intubar no primeiro contato, teria criado um problema desnecessário.
Até quadros psiquiátricos como catatonia ou síndrome conversiva, transtorno dissociativo, podem simular Glasgow baixo sem perda real da via aérea. Quem nunca viu uma senhora jovem após estresse agudo em situação de irresponsividade por causa psicológica?
Conclusão prática
A Escala de Coma de Glasgow é uma ferramenta valiosa, mas não pode ser usada como algoritmo automático para decidir intubação.
- Glasgow ≤ 8 no TCE e AVE agudo seja isquêmico ou hemorrágico: alto risco de perda da via aérea → considerar fortemente intubação.
- Glasgow baixo por condições crônicas ou reversíveis: avaliar contexto antes de agir.
- Glasgow > 8 com ameaça mecânica ou neuromuscular à via aérea: não hesite, a intubação pode ser necessária.
No fim das contas, o Glasgow é parâmetro de consciência. Proteção de via aérea é outra história, mesmo que se relacione a vigilância na maioria dos cenários clínicos. E o emergencista que entende isso foge das armadilhas do pensamento automático e protege o que realmente importa: a vida do paciente.
E você, já se deparou com um “falso Glasgow”? Situações em que o número não traduzia o risco real?


